sexta-feira, 18 de novembro de 2016

CRÔNICA

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

Freitas de Assis*

Escorre por entre os dedos a areia do tempo e tantas pessoas cruzam nossa estrada da mesma forma, que um dia cruzamos a delas. Sem nem mesmo imaginar que figuras de histórias alheias possam um dia estar diante de nossos olhos, passamos a ouvir e supor como esta ou aquela bravata se desenrolou de fato, que fatos apontados são reais e quais são mera licença poética ou mesmo uma lorota de indômita juventude.
A rotina maçante e modorrenta de Canindé na baixa estação não oferece emoções fortes e eu agradeço não ter tais emoções num trabalho que vez por outra envolve o risco da própria vida. As poucas ocorrências que surgem e conseguimos resolver sem maiores percalços, como a rotineira Maria da Penha e o furto de celular, são acompanhados de outras mais simples como a desinteligência ou a velha embriaguez e desordem e outra, culpada pela falta de educação de motoristas e usuários de som automotivo ou mesmo residencial. Ocorre eventualmente um assalto que chame mais a atenção ou uma agressão. Um acidente de trânsito e mesmo um homicídio. Mas já nos deparamos com algumas mais complexas como fuga e rebelião de detentos, além de assaltantes que contra nossa ação reagem com armas de fogo, sendo que em ocasião específica, estes não lograram êxito com meus colegas que agiram com extrema destreza e profissionalismo, alvejando-os na perna ante a injusta agressão.
Nesta ocorrência, uma particularidade com um dos envolvidos. No caso, o mais velho de dois irmãos da cidade de Catunda, o qual já esteve em Canindé uns vinte anos atrás e assaltou um taxista no terminal rodoviário, quando fez um frete para sua terra natal. Na ocasião, se não me engano, houve uma perseguição policial e também fora alvejado com um tiro na perna e preso.
Por volta de cinco horas da manhã o corpo, já condicionado ao longo dos anos, nem precisa ser mecanicamente despertado. O banho, o barbear, uma escovada rápida nos coturnos e vestir a farda complementam o preparatório da rotina de trabalho de doze horas a bordo de uma obsoleta viatura, que já teve seus dias de glória e ar-condicionado, essencial para suportar o clima saariano de Canindé.
Chego um pouco antes das seis horas da manhã, após uma providencial carona com meus sonolentos amigos que saem do turno da noite. Pego o armamento e sigo com meus pares para a jornada diária cheia de novas e velhas histórias. Dentro da velha viatura as mesmas reclamações: o salário, a inflação, a crise, o mensalão, a “lava-jato” e uma ou outra velha piada nova complementam o assunto, sem esquecer que algumas histórias têm um tempero apimentado da criatividade e humorismo que servem para matar o tempo e deixar o ar descontraído. E ainda sou questionado sobre histórias do passado da polícia que eu vivenciei em quase um quarto de século e que não são poucas, como a do assaltante de Catunda, Zé Luís – este é seu nome duplamente azarado quando em investidas em Canindé.
E o que acho ruim de contar histórias para meus colegas é que os mais experientes que trabalham comigo não têm nem a metade de meu tempo de serviço e quando me olho no espelho vejo as rugas de expressão e os ralos cabelos grisalhos contarem parte destas histórias, troféus que conquistei em minha existência, ecos dos tempos de herói.
Desde que ingressei na corporação, já existiam viagens para prestar serviço fora da unidade militar em que o policial é lotado. Pode ser numa eleição, num evento de grande porte tipo uma exposição agropecuária como a EXPONORTE em Sobral ou EXPOCRATO na região do Cariri e as corriqueiras viagens para a SEFAZ, quando os policiais passam uma quinzena em postos da Secretaria da Fazenda garantindo a segurança do posto e dos fiscais.  E como atrativos para o serviço, são pagas diárias de alimentação e pousada para os policiais.
Estas viagens já renderam uma infinidade de relatos e histórias que vivenciei e ouvi falar. Algumas quase são lendas, de tão extraordinário e surreal que possam parecer. Outras são muito tristes e trágicas, como a do soldado Afrânio, assassinado com um tiro de espingarda calibre 12 no rosto, no posto de Mata Fresca, próximo à cidade de Aracati. Mas a maioria tem cunho cômico e são bem pitorescas.  Ocorre que nem todos saíam satisfeitos com o término do trabalho e diziam para os que estavam chegando, que aqui “se faz”, aqui se paga, num sarcasmo com o nome do serviço prestado.
Corria o distante ano de 1998 e as músicas do momento que ouvíamos no rádio eram uma do Magal da Praia e outra de Gabriel, o Pensador. O posto para o qual eu fui escalado já não funciona mais às margens da BR 116 na localidade de Cristais. O comandante da guarnição era o sargento França, o OKAPA, que sozinho já renderia um bom livro, além de outro de Canindé, Cícero, o homem fera, filho do cabo Cipriano, e além desses, mais três soldados: Rogério, Maurício e Hélber, que assim como eu, estava com a esposa grávida à época e veio me visitar em Canindé, posteriormente. Hélber era uma pessoa extrovertida. Para os que eram chegados a um copo cheio, dizia que “iam colocar porqueira na boca”. Mas ele mesmo gostava de beber. Contou muitas aventuras de policiais que conheceu como uma que cita o subtenente Josa, da cidade de Russas, a qual envolve um estimado radinho de pilha e uma música com o refrão “de madrugada o pinto piou” e um flagrante de adultério em que o citado sub-oficial é descoberto e seu radinho tem um trágico destino.
Em outra narrativa, Hélber me falou que em Jaguaruana havia dois policiais que trabalhavam desde um bom tempo e eram benquistos e conhecidos do povo. Ocasionalmente recebiam presentes e mimos de pessoas agradecidas por serviços prestados e questões resolvidas, pois em cidades pequenas o policial militar fazia, e ainda faz, dada a inércia do poder público, o papel de juiz, delegado, padre, psicólogo, enfermeiro e leão de chácara, conseguindo mediar intrigas e desavenças diversas.
Os dois chamarei de Pedro e João. Estavam no policiamento a pé como de costume e em dia de feira. E João, em um belo dia de sol, recebe uma galinha de presente de um amigo. Deixa a ave na delegacia com um detento de confiança do destacamento militar e volta para a rua. Pedro tinha uma peculiaridade física que lhe rendeu a alcunha de “Oião”, ou seja, tinha os olhos grandes e um pouco esbugalhados. Pedro, depois de se separar de seu parceiro, vai até à delegacia e diz ao detento que negociou a ave com o soldado João.
Passado algum tempo João vai buscar seu brinde e tem a ingrata surpresa de saber que foi trapaceado pelo companheiro. Indignado com a rasteira resolve então tirar a história a limpo e vai até a casa de Pedro. Chegando lá, apenas o filho, uma criança de uns dez anos, se encontra. Um rápido diálogo tem início:
– Cadê seu pai?
– O papai saiu.
– Cadê a galinha que ele trouxe?
– A galinha do aniversário tá ali.
Já havia um propósito nobre para a galinha. Comemorar a passagem dos anos de um membro da família. Servir de quitute para ser degustado com uma boa destilada. Assada ou à cabidela. Ou mesmo quem sabe um toque de sofisticação e a serviriam “coq au vin”. Depois das palavras trocadas com o imberbe guri e mais algumas que convenceram o pequenino, João leva o bem subtraído de volta.
Chegando Pedro em sua residência, vê seu filho meio triste. Pergunta o que houve e recebe como resposta em meio ao quase soluço de um choro pueril a constatação que o aniversário teria uma mesa menos farta:
– Papai, um homem mau veio aqui, levou a galinha do aniversário e ainda chamou o senhor de Raposa do Oião.
É o fim do relato do soldado Hélber, que depois de vir em Canindé perdi seu contato e não nos vimos mais. Passado tanto tempo e com apenas lampejos em minha velha e gasta memória deste relato que com certeza pode não ser o mais fiel como me foi repassado, e trabalhando mais uma vez em um posto da Secretaria da Fazenda, desta vez em Messejana, também na BR 116, reencontro um colega do meu tempo de formação, e que não via desde que nos formamos: o sargento Viana. Está casado, com filhos, da mesma forma que eu, e trabalhou em várias cidades da região de Quixadá, seu torrão natal (a qual passou por uma grande tragédia neste ano de 2016 envolvendo três policiais mortos em serviço por homens armados de fuzis). Contou algumas peculiaridades de sua vida, do trabalho, pois da mesma forma como eu, gosta de uma boa leitura e também de algumas histórias engraçadas envolvendo as figuras humanas que compõem a Polícia Militar do Ceará, tipo uma rima malfeita envolvendo um queijo quadrado e a reputação da mãe de dois colegas em jornada etílica.
Neste posto, onde já estive outras vezes, conheci policiais de várias cidades e regiões cearenses. Limoeiro do Norte, Itapipoca, Quixadá dos meus amigos Viana, De Queiroz e Garleno e também da região jaguaribana. O tempo e o espaço em conluio com nosso destino faz com que cruzemos a estrada de pessoas que nem sonhavam que existíamos, e embora saibamos de sua existência sem necessariamente conhecê-las, não podíamos supor que um dia nossos caminhos seriam cruzados. A história da Raposa do Oião é um bom exemplo disso. Quase vinte anos depois de ouvir o relato do meu amigo Hélber lá na localidade de Cristais, estou em Messejana.  Trabalhando comigo, outros policiais, inclusive um do Vale do Jaguaribe com o mesmo nome da famosa raposa e com as mesmas características físicas da mencionada figura. Rimos um pouco quando relatei a história de uma disputada galinha. Não contei para o suposto protagonista e ainda hoje paira no ar a dúvida se ele era ou não a afamada raposa, apesar de ter o apelido de OIÂO. Fiquei receoso e não queria constrangê-lo. O mundo dá muitas voltas.

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*Sargento PM, colaborador do blog.

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