terça-feira, 1 de novembro de 2016

DIA DE FINADOS

FAMOSOS SEM SEPULTURA

Pedro Paulo Paulino

No dia consagrado aos mortos, vem-me à reflexão aqueles que se foram e não tiveram o abrigo digno de uma sepultura. Isto vale tanto para os anônimos quanto para as celebridades. No primeiro grupo, existe uma numerosa quantidade de pessoas, incluindo as vítimas de epidemias, acidentes aéreos de grande proporção e os mortos na guerra, por exemplo. No grupo das pessoas famosas, dentre outros, pelos menos dois grandes vultos universais não deixaram seu endereço final.
De Camões, lê-se que: “Entre 1579 e 1581 grassa em Lisboa, mais uma vez, violenta peste. A morte sobrevém em quatro ou cinco dias. No meio do caos reinante, com a acumulação de cadáveres para ser inumados, o corpo de Camões é apenas envolvido numa mortalha e lançado, com os de outras numerosas vítimas da epidemia, na cripta da Igreja de Santa Ana. Um terremoto em 1755 destrói o templo e mistura ainda mais as ossadas que sob ele jazem. Em 1880 todos os despojos que ali se encontram são levados para o Panteão dos Jerônimos, onde ficam sepultados, na esperança de que entre eles estivessem os restos do maior poeta português”. No dia da morte do autor de Os Lusíadas, 10 de junho de 1580, O historiador Diogo do Couto limitou-se a esse necrológio: “Em Portugal morreu este excelente poeta em pura pobreza”.
Wolfgang Amadeus Mozart, morto aos 35 anos, também foi enterrado numa vala comum no Cemitério São Marx em Viena. O túmulo do músico genial é apenas um cenotáfio – monumento erigido à memória do morto, sem conter seus restos mortais. Sua morte, pelo que se sabe, também não foi motivo de comoção coletiva. O rival Salieri e apenas mais quatro pessoas acompanharam o cortejo fúnebre de Mozart, mas voltaram da porta do cemitério devido ao mau tempo.
Já Albert Einstein, que conviveu com a imortalidade do seu nome, pediu para que seu corpo fosse cremado e as cinzas jogadas em lugar ignorado. O gênio da Relatividade temia que seu túmulo virasse lugar de peregrinação.
Um caso diferente foi o do político e intelectual Thomas Paine, tido como um dos “pais fundadores dos Estados Unidos da América”. Paine morreu em 1809, aos 72 anos, e seu corpo foi enterrado em Nova York. Tempos depois, seus restos mortais foram para sempre perdidos durante traslado para a Inglaterra, seu país de origem. O mais recente caso de uma celebridade mundial nessa categoria dos sem-túmulo é o terrorista Osama Bin Laden, que teve o mar como sepultura – pelo que dizem.
No Brasil, também, personalidades da história não tiveram a honra de ser enterrados dignamente. Deles, o mais contemporâneo nosso, Ulisses Guimarães, nome de relevo na luta pela redemocratização nacional, morreu num acidente aéreo e seu corpo perdeu-se no mar. Lampião foi morto, decepado e sua cabeça exposta ao público na calçada duma igreja. Antes dele, Antônio Conselheiro, o quase invencível líder sertanejo, desapareceu nos últimos dias de Canudos. Um corpo tido como o dele foi desenterrado dias depois e o crânio examinado pelo professor Nina Rodrigues.
Transitar da vida para a morte sem deixar vestígios do próprio corpo parece ter um charme especial. Por outro lado, o defunto célebre deixa de oferecer a oportunidade de muita gente visitar seu túmulo, sabendo que ali estariam os despojos físicos de um vulto imortal.
Nas grandes cidades do mundo, os cemitérios são verdadeiros pontos turísticos, a exemplo do cemitério Père Lachaise, em Paris, onde estão sepultados, no meio de mais de 70 mil túmulos, os escritores Molière, Balzac, Oscar Wilde, o músico Chopin e Alan Kardec. Aqui mais perto de nós, o túmulo do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, atrai milhares de pessoas no dia de Finados, numa calorosa romaria ao santo nordestino.
Nas necrópoles, desenvolveu-se até um outro tipo de arte, a arte tumular, que transforma o cenário pesaroso dos cemitérios em locais atrativos aos olhos. São monumentos e esculturas em grande estilo ornamentando as lápides e embelezando a cidade dos mortos. Além das artes plásticas, os cemitérios das grandes cidades guardam ainda outro tipo de cultura: os epitáfios.
Em essência, o epitáfio é a última palavra de quem se foi. Deve ser lacônico como a vida e feito para sempre como a morte. Há dois epitáfios famosos que, a meu ver, são os mais belos. O primeiro é o do poeta Álvares de Azevedo, em cujo túmulo está escrito: “Foi poeta, sonhou e amou na vida”. O segundo é o do escritor Fernando Sabino, composto por ele mesmo: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”. Brás Cubas, personagem fictício de Machado de Assis, faz uma dedicatória em tom de epitáfio: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico, como saudosa lembrança, estas memórias póstumas”. Enfim, quem não escreve seu epitáfio, cala-se mais.

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