quinta-feira, 3 de novembro de 2016

OBITUÁRIO

LUTO NAS LETRAS CEARENSES


Morreu na manhã de hoje, em Fortaleza, aos 72 anos, o médico e escritor Ray Silveira. Nascido em Massapê, Ceará, autor premiado nacionalmente e membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), Silveira destacou-se na crônica e no conto, publicando pelo menos quatro livros, além de diversos artigos e ensaios em jornais, revistas e sites.
Em 2010, ganhou o Prêmio Literário para Autores Cearenses (Secult), com o livro de crônicas “Louca uma Ova”. No ano seguinte, conquistou o Prêmio Concurso Nacional de Poesia – Correio das Artes 60 Anos, promovido pelo Governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Em 2015, lançou “Amadadama”, também de contos. Foi bolsista da Funarte/Ministério da Cultura (Bolsa de Criação Literária, 2010), tendo produzido a obra “Medicina Crônica”. Em 2013, recebeu o Prêmio Talentos da Maturidade, promoção bienal do Banco Santander, pelo conto “Gozo Precoce”.
Durante onze anos, Ray Silveira foi membro do Conselho Editorial da Revista Feminina, onde publicou artigos científicos. Tem ainda trabalhos publicados em outras revistas e livros médicos. Sua atividade literária cresceu com o advento da internet. O site italiano DOMIST, por exemplo, traduziu e publicou alguns dos seus textos em inglês, francês, espanhol, alemão e italiano.
Ray Silveira empreendeu também diversas viagens à Europa e Ásia, onde colheu subsídios para diversas crônicas em que descreve suas impressões do Velho Mundo. As crônicas foram publicadas em sua página na internet e em jornais e revistas especializados.


SOB O LUAR DE SEVILHA

Ray Silveira

Escrevo, tendo diante de mim uma velha foto esmaecida de meu avô materno, a  quem, infelizmente, não conheci em pessoa. Conheço, sim, nossa genealogia – desde o primeiro ancestral lusitano que aportou terra brasileira, de nome Manoel Ferreira Fonteles, nascido no século XVII no lugarejo Fontelo, próximo a Meixomil, situada na região de Entre D'Ouro e Minho –, até a geração atual. Se William Shakespeare tivesse visto a fotografia do meu avô, estou quase ciente de que seria nela que ele teria se inspirado para descrever o seu Otelo. Apesar da descoloração advinda do fluir dos anos, os traços do pai de minha mãe não deixam dúvidas: o negro brilhante dos olhos; o olhar alerta, viril, como se estivesse a espreitar virtual inimigo; a tez trigueira; o formato da testa e do rosto; a coloração dos cabelos, enfim tudo, me leva a suspeitar fortemente de que naquelas veias correu muito pouco sangue fenício, celta e menos ainda grego ou romano.
Estive em Sevilha por duas vezes. Em nenhum instante me senti no continente europeu. Como até então não conhecia o mundo árabe, não conseguia relacionar aquela cidade a nada que me fosse familiar, exceto à fotografia do meu avô, cujo "facies" percebia reproduzido nos sevilhanos. Mesmo assim sentia no ar, além da morna brisa quase mediterrânea, um não sei quê de passado; de sonhos da infância; de histórias lidas e relidas das “Mil e Uma Noites”. Com efeito, os sarracenos colonizaram a Península Ibérica durante mais de setecentos anos. Sete séculos! Quantas gerações! Se considerarmos somente a Andaluzia, onde a presença moura foi muito mais efetiva, não deveriam restar dúvidas: aquela região espanhola não tem nada da Europa. A fim de ser mais objetivo, devo lembrar certos fatos, lugares e costumes que presenciei.
Em diversos bares, restaurantes e outras casas noturnas, por exemplo, pude constatar uma estranhíssima mixórdia melódica. De um lado, uma máquina de som a reproduzir a todo volume, canções da música pop ocidental. No mesmo recinto, um segundo aparelho a emitir o som plangente, gutural, arrastado, misterioso, característico da música árabe. Mas a marca definitiva da presença daquele povo na Andaluzia está na arquitetura. Os próprios vilarejos à margem das estradas já denotam que se está a transpor fronteiras. Todas as habitações, por exemplo, são invariavelmente pintadas, cuidadosamente, de branco. O genial poeta e mártir andaluz Frederico Garcia Lorca tem um lindo verso sobre sua terra natal que sintetiza bem o que quero dizer: “Oh blanco muro de España”.
Estive naquela cidade em duas ocasiões e o inesperado, o fortuito, o surpreendente foi que me senti ali como se estivesse retornando à terra dos meus antepassados. Minhas primeiras impressões do lugar vieram dos aspectos arquitetônicos, como sucede todas as vezes que visito uma cidade de origem mourisca. Ainda não atinei bem com este meu antigo “namoro”; em outras palavras, não consigo uma explicação lógica para o motivo pelo qual a arquitetura árabe me fascina tanto. Não quero emitir neste texto conceitos ou opiniões volúveis, mas existe um “não sei quê” na cultura sarracena que me atrai, além do que seria razoável. Partindo da área comercial – no centro de Sevilha – e correndo em direção aos prédios governamentais, há uma estreita viela onde não transitam veículos mas que é uma importante via de pedestres. É conhecida simplesmente como “Sierpes” e lá estão situadas as lojas mais deslumbrantes da cidade e os restaurantes mais famosos.
Outra atividade prazerosa do lugar é desfilar de carruagem alugada pelas ruas principais. Tem-se a sensação de se estar a passear na Sevilha do século passado. O hotel onde fiquei, em tudo me trazia à memória as cenas mais surreais de “Este Obscuro Objeto do Desejo” de Luís Buñuel. Mas o que mais me encantam em Sevilha são três magníficas construções: a Catedral, a Giralda e o Alcázar . A primeira fica no centro da cidade, pode ser avistada a alguns quilômetros de distância e é o segundo ou terceiro maior templo da Europa. Basta dizer que comportaria, em seu interior, Notre Dame inteira. Suas naves são tão largas que, durante as procissões da Semana Santa, andores que normalmente evitam certas ruas da cidade – como a Sierpes, por exemplo – passam tranquilamente através delas.
“La Giralda” (cata-vento) é o símbolo da cidade! Fica ao lado da Catedral e trata-se de gracioso minarete mourisco que foi construído juntamente com a mesquita original a qual foi demolida para dar lugar ao templo católico, quando da expulsão dos mouros. Os amoádas – dinastia de origem berbere que dominou o sul da Espanha e o norte da África entre os séculos XII e XV – foram os construtores da Giralda. É curioso observar como os historiadores espanhóis intentam omitir a participação deste povo – os bérberes – na dominação da Península Ibérica durante todo aquele período. É um preconceito! Mas não há como fugir da verdade.
Ironicamente, o exemplar mais belo, mais portentoso, mais majestoso da arquitetura mourisca que vi em Sevilha, é obra de um Rei Espanhol. Em 1366, Pedro I de Castela, respeitando o quanto pôde as ruínas que encontrou do antigo domínio mouro, erigiu a maravilha que é o Alcázar sevilhano. Na suntuosa fachada do edifício pode-se ler reiteradas oito vezes a sentença: “...no vencedor sino Alá”. Ao redor do grande Pátio da Donzelas estão os três salões de recepção: à frente, o dos Embaixadores, em cujas portas e em caracteres africanos cantam-se as glórias de “nosso senhor o Sultão” engrandecido e mui elevado dom Pedro, rei de Castela e de León; à direita, o Dormitório dos Reis Mouros, no qual se lê: “Glória a nosso senhor, o Sultão Dom Pedro, que Alá o ajude e proteja”; à esquerda, o Salão de Carlos V, porque nos tempos do Imperador se lavrou seu artesanato magnífico.
É assombroso pensar como um povo – hoje aparentemente tão afastado da Península Ibérica – pôde dominar aquela região por tanto tempo. Sua expulsão somente foi possível após décadas de lutas renhidas. Por esta época, Córdova já era uma grande metrópole enquanto Londres ainda marcava passos como uma quase insignificante província. Enquanto Colombo chegava ao Novo Mundo, Granada ainda resistia nas mãos daquela gente que só se rendeu exatamente no ano do descobrimento das Américas.
23/09/15

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